Aquele 1º de abril, eu vivi – Por Trajano Jardim

O artigo abaixo foi escrito vice-presidente do Sinproep-DF, Trajano Jardim, integrante da Comissão da Verdade dos Trabalhadores em Educação do Setor Privado de Ensino, instaurada pela Contee. É um testemunho vivo do que há 60 anos. O golpe de 1º de abril de 1964, não pode jamais se repetir.

Trajano Jardim

Nos dias que antecederam o 1º de abril (de 1964), a agitação deixava todos dirigentes sindicais e políticos tensos. O comício da Central do Brasil, de 13 de março, criara um misto de confiança e ao mesmo tempo de preocupação sobre que rumo o País tomaria. Cada setor da sociedade tinha uma avaliação particular de qual seria o caminho. A imprensa corporativa, como sempre, semeavam provocações e boatos sacudiam os noticiários dos jornais, do rádio e da televisão, que nessa época ainda engatinhava.  O Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), de há muito, vinha se reunindo com regularidade, com o objetivo de avaliar a situação e organizar a resistência ao golpe que, na opinião de vários diigentes, “estava em marcha”.

Na sede da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), a maior organização laboral da América Latina, o entra e sai era constante. A cada minuto chegava nova informação sobre a situação. Os dirigentes do CGT, o portuário Osvaldo Pacheco, os tecelões Clodesmidt Riani, e Hércules Correia, o marceneiro Roberto Morena, o metalúrgico Benedito Cerqueira e o ferroviário e deputado federal Batistinha, estavam em contato permanente com o comitê de crise formado pelos partidos políticos e pela Frente Parlamentares Nacionalistas e representantes do governo, com o objetivo de se informar sobre o andamento da crise.

Em vista do agravamento da situação, o CGT convocou uma reunião de emergência no dia 29 de março, para avaliar a correlação de forças em relação aos setores golpistas, na Guanabara liderados pelo governador Carlos Lacerda, que no dia 19 liderara a “Marcha com Deus pela Família” e se articulavam para derrubar o presidente João Goulart e instituir uma ditadura no País. Participei dessa reunião como representante dos gráficos do então Estado da Guanabara. Naquela reunião foi discutida a proposta do deputado Leonel Brizola, – líder da Rede da Legalidade em 196 – de implantação do Estado de Sítio pelo governo João Goulart. A maioria das principais lideranças das forças democráticas e progressistas se posicionou contra tal proposta, endossando a argumentação do líder do PCB, Luis Carlos Prestes, de que “historicamente o Estado de Sítio sempre foi contra a classe trabalhadora”.

O Comando Geral dos Trabalhadores, na reunião da noite de 30 de março, avaliou que o golpe era iminente. Assim, foi aprovada a deflagração da Greve Geral Nacional no dia 1º de abril. Na nota dirigida à Nação, o CGT afirmava que “só a resistência dos trabalhadores nas ruas poderia barrar o golpe”. Afinal, só na Guanabara o movimento sindical tinha conseguido mobilizar mais de 100 mil pessoas no comício de 13 de março.

O trabalho de mobilização foi intenso. O transporte de massa, que naquela época era feito pelos trens da Central do Brasil e da Leopoldina. No dia 1º foram totalmente paralisados. A Rádio Nacional foi ocupada pelos funcionários liderados PE ló radialista Emilson Froes, presidente do sindicato. A rádio abriu espaço para os dirigentes sindicais convocarem os trabalhadores de suas categorias a apoiar à greve geral. Fui indicado pela diretoria do Sindicato dos Gráficos para conclamar os trabalhadores gráficos ao movimento grevista.

Deixei a rádio com alguns companheiros e quando chegamos ao Sindicato soubemos que a polícia e o exército haviam ocupado a Rádio Nacional e prendido os radialistas e funcionários que estavam no comando da emissora e que o presidente Jango tinha embarcado para Brasília, com o objetivo de organizar a resistência ao golpe.

Ficamos de vigília no Sindicato esperando alguma orientação para lutar contra o golpe. Corriam boatos de que o almirante Aragão comandante do Corpo de Fuzileiros Navais iria organizar grupos de voluntários. O local de encontro seria na Cinelândia. Nós, os militantes comunistas, vimos que a situação estava sob o controle do exército e da polícia. Algumas dezenas de pessoas se manifestavam com palavras de ordem de “fora Lacerda”, “viva Jango”. Sabia-se que o prédio da UNE fora incendiado pelo “Comando de Caça aos Comunistas” e que em Brasília os militares favoráveis ao golpe de Estado tinham pretensões de prender o presidente Jango e este, por segurança, embarcara para o Rio Grande do Sul. Nossas esperanças se esvaíram com a fina chuva daquela fatídica quarta-feira.   

A movimentação de carros da polícia era intensa. Naquele momento éramos cinco, talvez seis gráficos militantes comunistas, desnorteados em pleno centro da cidade do Rio de Janeiro. Um deles, Francisco Nunes, que era secretário da base dos gráficos do PCB, o “Velho Partidão” morava na Piedade, um bairro de classe média, distante 30 km do centro do Rio.

Começamos a caminhar pela Avenida Rio Branco vagarosamente fazendo as nossas conjecturas do que seria o dia seguinte. Como não tínhamos informações do desfecho daquela situação, a nossa expectativa era de que o esquema militar do Jango funcionaria a partir do Rio Grande do Sul, onde o comandante do Exército general Ladário Teles, era fiel a João Goulart. Essa nossa esperança esvaiu-se. Nos dias que se seguiram mostrou-se que não passava de vã esperança. Jango não aceitou o enfrentamento. Hoje temos conhecimento que fora aconselhado pelo ministro das Relações Exteriores Santiago Dantas, a não tomar este caminho, tendo em vista que o governo estadunidense havia postado a Quarta Frota no litoral brasileiro em apoio ao golpe. Caminhávamos sob a fina chuva há algumas horas. Não havíamos nos alimentado por todo o dia e não sentíamos fome nem sede. Francisco Nunes instintivamente seguia rumo a Piedade.

Analisando a situação de cada um de nós do grupo, concluímos que o mais visado era eu. Por este motivo não deveria ir para minha casa naquela noite. O Nunes aconselhou-me ir com ele para a sua. Todos aceitaram a ideia. Os demais companheiros tomaram seu rumo e eu segui com o camarada Francisco Nunes. Chegamos à piedade por volta das 10,30 horas. Tínhamos saído da Cinelândia às 15 horas. Caminhamos 7 horas e meia e estávamos molhados até os ossos.

A nossa preocupação maior era saber das notícias pela televisão, que naquela época era em preto e branco. Na telinha, ainda oval, aparecia o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, (um dos líderes da UDN, partido que era o esteio civil do movimento golpista), com uma metralhadora em cima da bancada. Ele se apresentava como o grande responsável de ter livrado o Brasil de ser dominado pelos comunistas. Para nossa decepção, os noticiários davam conta de que o Congresso, sob a presidência do senador Auro Moura Andarade, embora o presidente constitucionalmente eleito estivesse ainda em território nacional, considerou vaga a presidência da República, destituindo de forma ilegal o mandatário do País e colocado na presidência o deputado Ranieri Mazili.

Naquela noite, por motivos óbvios, não pregamos os olhos. As emissoras eram poucas. TV Tupi, Rio, Excelsior e as rádios.  Ficamos freneticamente girando os botões da televisão e do rádio, em busca de notícias que pudessem nos dar algum alento. Para nossa decepção, tanto nas TVs quanto nas rádios davam conta de que estávamos sendo derrotados. O golpe se consolidava. Algumas lideranças sindicais já apareciam como procuradas. Principalmente os dirigentes do Comando Geral dos Trabalhadores. O dia amanheceu. E só aí a “ficha caiu”. E agora, o que fazer? (voltávamos a Lênin, na derrota de 1905 na Rússia).

Naquela época a comunicação não tinha as facilidades de hoje. Os contatos eram interpessoais e institucionais. Francisco Nunes e eu resolvemos ir até o centro da cidade – agora de condução – ver como estava a situação do Sindicato. No prédio onde funcionava a sede fizemos contato com o Fabrício, que era o nosso companheiro que administrava a entidade. Ele nos colocou a par da situação e disse que só havia feito contato com Walter Torres, diretor-tesoureiro do Sindicato.

Walter Torres era de família religiosa e conservadora, mas era um companheiro leal e solidário. Com o golpe militar nossas relações estreitaram-se de forma muito forte. Ele sabia que, pelas minhas atividades políticas partidárias, a qualquer momento eu poderia ser preso e ele, junto comigo, por certo, iria ter complicações. Mas Torres resolveu enfrentar e nós garantimos a continuidade do Sindicato dos Gráficos, enquanto todos os demais diretores desapareceram.

Torres tinha um parente que era o pároco da Igreja Nossa Senhora da Lampadosa, na Avenida Passos, 15, perto da Praça Tiradentes, próximo ao Sindicato. Por três meses fizemos da igreja o nosso local de funcionamento do sindicato. Ajudávamos a fazer velas e outros trabalhos na igreja.  A polícia ocupou o Sindicato por cinco dias, Revirou tudo. Perguntou aos funcionários pelos diretores e levaram uma bandeira da CGT argentina que viram pendurada na parede.

 A poeira baixou e retornamos ao Sindicato. Eu voltei para a empresa onde trabalhava desde 1959. Em 1966, a com a repressão cada vez mais intensa e com inclusão do meu nome no IPM da imprensa, fui demitido por razões óbvias, embora a empresa tenha me pago todos os direitos. A partir daquele instante concluí que a minha vida iria virar “de ponta a cabeça”.

Não queria acreditar nas previsões do velho Erasmo, camarada que me filiou ao Partidão, quando dizia “esse é um golpe para 20 anos”. Infelizmente ele acertou em cheio. Foram 20 anos, dos quais sete eu vivi na clandestinidade  e por quase dois exilado na saudosa União Soviética.

Hoje fui reconhecido como “perseguido político” e recebi as “desculpas do Estado brasileiro”. Um sofisma que jamais trará de volta milhares de militantes mortos, alguns fraternos camaradas, como Itaí Veloso, (considerado meu querido irmão pela nossa semelhança física), João Macena Melo, e muitos outros, que sofreram torturas físicas e psicológicas, perderam aa sua vidas, por terem como crime a esperança de construir uma sociedade justa, fraterna e igualitária.

Deixaram pela estrada da vida seus sonhos, interrompidos pela violência absurda e cruel, que esperamos ver reparada de fato, sem sofismas. Com a condenação dos criminosos torturadores. Embora, sessenta anos depois, presenciemos cenas como a de oito de janeiro de 2023.

Aquele 1º de abril, eu vivi e sobrevivi.

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*Trajano Jardim é jornalista profissional, militante comunista há 64 anos. Atualmente filiado ao PCdoB-DF. É diretor do Sinproep-DF e integrante da Comissão da Verdade dos Trabalhadores em Educação do Setor Privado de Ensino, instaurada pela Contee